Uma. Duas. Três. Quatro. Dez. Doze. Doze vezes. Doze infelizes vezes que o nosso carro capotou. Senti cada impacto. Vi cada caco de vidro voando por todas as partes. Senti cada peça do carro ser despedaçada. Senti meu sangue escorrendo pelo meu corpo. E senti o airbag sendo empurrado contra mim. Senti meus ossos quebrarem. Senti algumas lágrimas saindo dos meus olhos. Senti minha respiração ficar ofegante. Senti meu útero e barriga doerem imensamente como se alguém dentro de mim pedisse por socorro. E pedia.
Sangue. Sangue. Sangue. Ele estava coberto por sangue. Seus cabelos bagunçados e colados na testa onde uma poça do líquido vermelho já estava formada. Suas pernas estavam esmagadas pelas ferragens do carro, o airbag pressionando seu corpo contra o banco. Seus olhos estavam abertos, mas ele não se mexia. Engoli em seco. Abri a boca na tentativa de chamá-lo, mas eu não tinha forças para isso. Todo o meu corpo doía e eu lutava para me manter acordada.
Olhei em volta e uma multidão se formava ao nosso redor. Pessoas gritavam perto de mim. Suas bocas gesticulavam coisas que eu não conseguia entender, pois estava tomada pelas lágrimas que eu não conseguia conter de forma alguma.
- Logan... - Falei baixinho quando finalmente consegui. - Por... Favor... - Falei entre engasgos.
Ele continuava imóvel. Seus olhos azuis não tinham o mesmo brilhos de todos os dias quando me acordava aos beijos. Aquele olhar de quanto colocava uma mecha do meu cabelo atrás da orelha e beijava meus lábios com cuidado, como se tocasse em algo precioso. Seu olhar estava morto, assim como ele.
- Nós vamos cuidar de você, meu bem. - Um dos paramédicos sorriu enquanto me carregava para dentro da ambulância. - Você pode me dizer o seu nome? - Ele indagou.
- Amy. Amy... Price. - Falei baixinho e pausadamente. Price... Sra. Price.
- Tudo bem, Amy. - Ele assentiu. - Preciso que você seja forte, tudo bem?
Um dia Gandhi disse "O amor é a força mais abstrata, e também a mais potente que há no mundo." Eu sabia que o ser que me fez viver o amor estava morto. Em que lugar eu buscaria forças para sobreviver? Eu não queria.
- Amy, olha aqui... - Ele segurou o meu rosto entre suas mãos, quando me viu desfalecer. - Fica comigo.
As portas da ambulância foram fechadas e ali permaneci com ele e mais alguns paramédicos remexendo-me. Eu fechei meu olhos e continuei chorando. Não queria falar nada, nenhuma dor física se comparava ao que estava acontecendo.
Levei uma das mãos à barriga e respirei profundamente. Eu não queria pensar que também o perdi, mas eu sabia que sim.
- Meu bebê. - Falei baixinho. - Eu estou grávida... Ou estava. - Senti meu coração apertar dentro do meu peito.
Ele levantou minha blusa, revelando uma barriga ainda pequena e lisinha. Iniciou o exame com um ultrassom portátil. Não olhei para a telinha, não olhei para ninguém.
- Ele morreu, não foi? - Sorri sem graça.
- Estamos quase chegando no hospital, você será atendida e um obstetra poderá falar sobre isso com você bem melhor que eu.
- Ele morreu. - Engoli em seco.
Enquanto eles limpavam meus ferimentos, faziam curativos e tratavam de mim da maneira que podiam, minha mente voltou-se para Logan.
Minutos depois do acidente, ouvi sirenes. Eram os bombeiros. Correram até Logan e sentiram seu pulso. Ou melhor, não sentiram. Concordaram que precisavam me tirar de lá o mais rápido possível, isso não custou muito, já que o meu lado do carro estava para cima, facilitando o trabalho deles.
Logan estava preso nas ferragens. Quando eu saí de lá, eles ainda estavam tentando cortar os ferros para tirar o seu corpo. Seu corpo, só o corpo... Ele não estava mais lá. Nada dele restava ali. A essência do médico dedicado, do marido amoroso, do pai brincalhão que seria, do amigo fiel, do filho educado... Aquela essência não estava mais perto de mim.
Quantas vezes acordei desesperada por sonhar com a sua morte? Inúmeras. Ele sempre me envolvia com os seus braços, me deitava sobre o seu corpo como se eu fosse uma criança, e me protegia de toda a dor. Ele não conseguiu me proteger quando tudo de fato aconteceu.
***
Olhei para aquela movimentada sala de cirurgia. Enfermeiros de um lado, cirurgiões de outros, instrumentadores, anestesistas... Todos prontos para fazerem o melhor por mim. Lembrei-me da última vez que estivesse nessa situação... Ele estava ao meu lado. Eu o tinha. Ele fizera o melhor por mim.
- Repararemos esses estragos. - A médica piscou para mim antes da anestesia invadir-me.
E os estragos em meu coração, vocês também reparariam?
***
- Meu amor... Que tragédia! - Mamãe apertou minhas mãos enquanto chorava ao lado de minha cama.
Fechei meus olhos e me permiti chorar. Não falei nada, não gesticulei nada, apenas chorei por toda a dor que eu estava sentindo.
Foram muitas visitas em pouco tempo. Todos estavam sabendo do terrível acidente, da tragédia que nos assolou de uma hora para a outra. Mamãe, David, Megan, até mesmo o meu pai veio me ver. O Sr. Price, pai do Logan, também compareceu. Chorou durante alguns minutos ao meu lado, gostaria de lhe dizer algumas palavras, mas eu sentia a sua dor e sabia que nada que eu dissesse poderia melhorar o seu sofrimento, então apenas o abracei.
- Seu sofrimento é em dobro, minha querida. - Ele acariciou a minha barriga. - Eu sinto tanto por isso. Meu Deus... - Ele passou a mão em seus cabelos. - Como isso foi acontecer? Por que logo com vocês?
Nunca saberíamos o motivo de todas as tragédias acontecerem, elas só acontecem. Elas nos atingem de uma hora para a outra e levam tudo consigo. São como ondas grandes que nos atingem enquanto estamos distraídos no mar. Nos arrastam com toda a sua força e nos golpeiam dolorosamente.
***
Aquela noite fora a mais difícil possível. Eu era Amy Price, uma garota de 24 anos, casada com um lindo médico, com o qual vivi uma linda história de amor, grávida de 3 meses do seu primeiro filho ou filha, formada, com um bom emprego e uma família maravilhosa. De repente, tornei-me apenas Amy... Sem nada, sem ninguém. A mesma Amy de anos atrás, só que muito mais vazia e carregando dentro de si uma dor enorme.
Ainda não havia completado 24 horas desde que tudo aconteceu. Eu só desejava que aquilo fosse um pesadelo do qual eu iria acordar e receber o seu abraço reconfortante. Juro que balancei o meu corpo tentando me fazer acordar, até que me dei conta de que tudo era real, meu pesadelo era a minha vida.
- Posso entrar? - Uma voz estranha e ao menos tempo familiar ecoou pelo quarto. Virei-me para a porta e o fitei. - Desculpe por incomodar, só quis saber se você estava bem.
- Não se apaixone por mim e nem espere que eu me apaixone por você. Eu já vivi um romance intenso o suficiente por essa vida e não quero mais ninguém perto de mim. - Respirei profundamente depois de falar. - Pode ir embora.
- Ei, calma. - Ele levantou os braços em rendição. - Não estou tentando te conquistar, Sra. Price. - Ele sorriu de lado. - Soube da sua história. Sinto muito.
- É o que todos dizem. - Dei de ombros.
- Perdi minha esposa em um acidente também. Eu realmente sinto muito. - Ele suspirou e saiu do quarto.
Fora ele o paramédico que conversava comigo enquanto me socorria. Tentava me manter firme, viva. Estava grata por tamanha preocupação, mas ferida demais para conseguir conversar com alguém sem também ferir.
***
Um braço e uma perna quebrados, escoriações por todas as partes do corpo, testa com alguns pontos, um enorme desconforto abdominal por conta da curetagem, assim eu fui liberada. Eu sentia muitas dores em meu corpo, mas as dores em minha alma eram imensuráveis. Eu havia perdido o Logan, e junto com ele, o maior presente que eu havia ganhado, o nosso bebê. A vida me arrancou os dois de maneira abrupta. Não me restou sequer um pedacinho deles para que eu pudesse me assegurar nos dias maus. Eu estava só. Ninguém seria capaz de me curar. Eu não acreditava que com o tempo as coisas fossem melhorar, nada iria melhorar.
Um dia o Logan me falou que éramos épicos, que a nossa história era inacreditável e insuperável, eu estava completamente convencida disso. Eu não aceitaria supera-lo.
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